domingo, 9 de outubro de 2016

O desgraçado.

Gordos de vaidade, de manias, de avareza. Estão obesos, comem um banquete e dão-nos uma colher meio cheia. Esperam o nosso contentamento, enquanto nos atiram areia para os olhos. Temos os olhos cheios de areia! Gente, gentalha, vamos para o mar, mergulhar, renascer! Chamem o Pessoa, chamem o Negreiros! Encham os peitos de indignação. Somos um povo que se prende a um passado ilusório, a um passado falhado, orgulhosos dos mares que aclamámos, pontes para a tortura de povos vastos, contentes por títulos de senhores que abraçaram a escravidão, a ingratidão. Gritamos com a voz bem grossa e distinta "Fomos os maiores!", "A raça portuguesa!". Fomos pequenos, continuamos pequenos, raça pequena. Somos pequenos porque acreditamos, acreditamos no que nos disse hoje o político que ontem pôs tudo ao bolso, e chamamos de louco o sano que gritou asneiras e bugalhos na assembleia o mês passado, contamos ao vizinho que foram as maiores calamidades. Pedem-nos para poupar, enquanto mandam o motorista estacionar o Mercedes à porta. E nós aceitamos, aceitamos a riqueza deles e a nossa pobreza. Acreditamos que a melhoria é impossível. Caímos numa espiral depressiva. Apegamos-nos aos nossos feitos passados, à espera que algo como o passado vitorioso apareça. E acreditamos que o passado foi realmente vitorioso, algo orgulhoso. Fechamos os olhos. De joelhos no chão. Juntamos as mãos. E pedimos mais uma vez. "Ajude-me, ajude-me Deus!" 
Saímos à rua para a missa das oito, e olhamos de lado para o descalço, cuspimos no nosso prato. Falamos em caridade com os amigos, e fechamos os olhos para aquele que custa olhar. Entramos pela porta de nariz empinado. Choramos ao jantar. As dividas aumentam, as aparências diminuem. Aceitamos os deveres, deixamos escapar os direitos. Apertamos mão com a submissão, e deixamos o patrão gritar mais uma vez. Olhamos, pedimos desculpa e somos roubados no fim do mês. Estamos a pensar no descalço que vimos na semana passada, nas parecenças que aparecem agora quando as nossas aparências caiem. A areia já chega ao pescoço, o mar já nem se vê ao longe. O futuro tira-nos os sapatos. Somos o desgraçado.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Evolução e Ilusão

A verdade é que temos que acreditar na evolução. A sério, é no que temos que acreditar. Temos que parar de acreditar em objectos brilhantes, papel verde, e personagens glorificadas inexistentes como o poder. Objectos, papel, e personagens glorificadas inexistentes, não é estúpido? O que nos controla ou é fictício ou é inútil para o ser humano. Eu não como papel, muito menos pedras, e tenho certeza que o poder não me torna de imediato uma melhoria no Mundo. No entanto todos nos dizem que precisamos de dinheiro, que com a riqueza é que somos felizes, e com poder és o rei do Mundo! Podes dizer "Mas você sabe quem é que eu sou?!" e passar nas filas dos restaurantes e dos supermercados com esta pergunta tão humilde e inocente. Somos isto, sim isto, não somos ela, ele, elas, eles, tu ou eu, somos isto, porque deixámos as nossas melhores características como seres racionais desaparecerem de geração em geração com a ajuda de um capitalismo desenfreado, esquecemos-nos que precisamos do outro para aprender e crescer, precisamos da união e da compaixão, não precisamos "disto", e por mais que a culpa seja das grandes corporações e das grandes potências mundiais, a verdade é que o mal começa em baixo, quando alguém entra num trabalho, inocente e à procura de um rumo para a sua vida, e encontra sacanas como colegas de trabalho, que ao invés de proporcionarem um bom ambiente e ajudarem como um bom ser humano fazer-ia, destroem todos os degraus que vão deixando para trás e ainda dizem que foste tu. Quando alguém grita contigo no balcão porque os preços estão demasiado altos. Quando alguém se mostra superior porque és tu que estás a trabalhar. Temos memória curta. O estagiário não tem culpa de estares à 10 anos no mesmo posto, com um ordenado medíocre. Quem está atrás do balcão não tem culpa dos preços, provavelmente tem a mesma opinião e está farto de ser explorado. E tu, já tiveste ali, no início, com um ordenado que não dá para sair da casa dos pais, e detestavas, mas estás agora a fazer o mesmo. Reclama com quem está agora numa ilha paradisíaca a aproveitar os aumentos que não te deu. Reclama com quem aproveita os lucros daqueles preços tão altos. Reclama de ti, por espalhares o ódio a quem sofre tanto como tu, ou ainda mais. Está tudo a correr para o lado errado, onde a compaixão escasseia, o que está lá é o dinheiro, o sucesso, e uma casa demasiado grande para apenas uma pessoa, onde a loucura é certa na velhice. Esquece isso tudo. Tu não precisas "disto". E reclama a evolução que nos fingem dar.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Algo Vetorial

Sinto uma leve força a aproximar-se.
Como se puxada para um vácuo,
Achando que será algo inócuo,
Avanço com notificação de algum sofrimento,
Para aquele visível rodopio de sentimentos.

E como qualquer outra criatura,
Adapto-me ao meio.
Tão feio. Tão belo. Uma mistura.
Pois agora, a leve força que em tempos veio,
Aumenta de patamar e é algo que já dura.

A questão temporal também vinca,
Os fervorosos defeitos foram superados.
Já não é superficial, é interno e talvez permanente.
Ambos já estamos então embrulhados, 
Numa força que supera algo nunca superado até ao presente.

C. Nunes

Patinho feio

Este texto não é suposto ser bonito, é suposto mostrar uma realidade feia, e é impossível mostrar o feio com o bonito, ou então é apenas mais fácil mostrar o feio no seu mais puro estado, sem floreados, sem toques nem retoques. O feio é tão disforme e disperso que pertence a todos, e se não tens o feio em ti, alguém há de te o atribuir, ninguém é perfeito já dizia a minha mãe, e se por acaso alguém for, esse será o seu defeito, o humano não consegue lidar com o perfeito, o pior do humano aparece quando se apercebe do perfeito e se dá conta que está longe dessa tão querida qualidade. É sobre um lado feio do humano que eu quero escrever, o facto de a nossa essência maligna estar presente em todos os cantos do mundo, em todos os países, todas as cidades, e por todos os caminhos em diante, todos os dias os nossos olhos vêm pobreza ou escravidão, seja directamente ou indirectamente, o mais macabro é que nós ajudamos a esta pobre situação, eu não me excluo, infelizmente sei que mesmo não querendo já contribui fechando os olhos, somos estúpidos e egoístas, pelo simples facto de termos querido aquela t-shirt nova, porque a que estava na gaveta que comprámos o ano passado já estava fora de prazo e usar uma t-shirt duas vezes numa festa diferente podia dar má imagem, manchar a nossa reputação. Reputação limpa, mãos manchadas de sangue, aproveitar festas nos melhores trajes enquanto no outro lado do mundo escravizamos pelos nossos caprichos e tornamos países em grandes contentores de lixo, e não compensa por aqueles ténis novos de cento e tanto euros que custou apenas cerca de cinco euros a fabricar por uma criança de doze anos? Nós compramos e compramos, e a única coisa que enche é o nosso armário, as carteiras e os corações estão vazios, sempre a contar os tostões e a gritar com o coitado que estiver mais a jeito, e é assim, sem sequer nos apercebermos, cegos por luxos que nos tapam as emoções, que cometemos as maiores atrocidades, repetindo a história mais uma vez numa localidade diferente, entregamos a nossa liberdade e alegria de mão beijada a quem nos quer mal com um sorriso momentâneo proporcionado pela nova compra. É óbvio do que estou a falar, a verdade é que não gostamos do feio, ele é custoso de se ver. Fechemos os olhos mais uma vez, é mais fácil dizem eles.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Perseguição quadrada

Uma esfera encurralada por quadrados, a fuga que parece impossível, cada curva parece mais apertada, agora quase que cai a contorná-las, a cada vislumbre da próxima, o coração quase que pára, o receio, receio do despistamento, do acidente inevitável, com o passar das horas, dias, mais o inevitável sussurra ao seu ouvido, ele não sussurra, ele grita, grita até provocar surdez e cegueira. Quadrados a encurralarem esferas, parece heresia, parece fantasia , mas é a mais pura das tristezas e das alegrias. Outra curva acerca-se, a coordenação motora atrofia, a queda parece evidente, os olhos estão cansados e os ouvidos moídos das ciladas da travessia, a esfera desiste, cega e surda, de uma fuga interminável, dominada por quadrados, com uma táctica que não falha, eles estão preparados. Outra curva avizinha-se. A esfera desaparece nesta curva sozinha. Nunca a apanharam, mas a fuga foi terminada.